sábado, 6 de setembro de 2014

Confissão


A verdade é que eu deva ser um masoquista. Não chego a cortar meus pulsos, ou pôr cordas em meu pescoço, ou pratique qualquer lesão em meu corpo. Não, não sou assim. Me deleito com a dor no coração, a dor na alma. Sou um louco doente. E não há dor mais prazerosa do que esta. Sim, não há, pois somente a dor oriunda do coração é capaz de nos fazer sofrer.
Demorei para me aceitar nessa condição. E se assim eu for, que mal eu exerço sobre os demais? Que perigo oferto, senão aquele que a mim mesmo tomo? Creio que nenhum.
Mas o problema de ser masoquista, não é o que possa fazer aos outros, até porque, para ser considerado crimes, tais delitos devem ser praticados em outras pessoas, que não a mim; e sim o que faço a mim. Sobretudo porque a causa dele é oriunda de você.
Você, logo você, dentre todas eu jamais pensei que fosse causar tanto sofrimento, que fosse atenuar minha doença de fazer mal a mim mesmo. Você, que era singela, pura e paciente. Você que tinha todos os artifícios que poderia usar sobre mim, decidiu usar justamente aquele que me deixou mais vulnerável, sua personalidade. Ou pelo menos o que pensei que fosse ela.
Seria suportável perder você, se não estivesse acostumado a ouvir você me chamando de guri e de baixinho, ainda que você esteja apenas centímetros a mais que eu. Seria suportável te perder, não fosse as vezes em que sonhei com nossa vida juntos.
Não irei me vingar, não há motivo para tal, se a vingança houvesse de vir à tona, teria de vir de você não de mim, afinal a tua insegurança era por mim.
Muito aprendi, pouco te ensinei, mas por intermédio do destino, ou por causa além de minha compreensão, será outro que em teus braços irá aprender o que me ensinastes e o que eu te ensinei.

            Então sim sofro. Sofro por mim, sofro por ti. Desejei a tua felicidade, mas jamais afirmei que tal felicidade seria a minha.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

O diario

A garota repousa a cabeça contra o lado da cama e reflete sobre todo o seu dia, a mensagem recebida e o pedido informal e surpreendente do garoto que ela gosta. A cabeleira ruiva amortece o atrito da madeira envernizada com o crânio, seu sorriso inunda sua face de orelha a orelha, fazendo com que suas sardas se espalhem pela face como café derramado em uma toalha branca.
O diário a fita no criado mudo ao lado da cama, a capa rosa envelhecida e suja com os anos de uso, as paginas que sofreram vários abusos e violência, manchadas de café, engorduradas pelos salgadinhos, sujas pelo chocolate que se prende aos dedos, murchas pela água. Guerreiras natas, sobreviventes a onze anos de atrito com a ponta de uma caneta, que não tinha um ritmo certo.
Se você conseguisse folhear as páginas deste diário, veria que nada disso é fantasia do narrador para entretê-lo, e sim a pura realidade de uma batalha travada entre as paginas em branco e os sentimentos de uma garota adolescente.
Luna encara o velho amigo chamado Will, o traz para seu colo, prensando-o contra a sua coxa desnuda e o abdômen coberto por uma fina camiseta regata. Faz um calor do lado de fora daquela janela, mesmo com o ar condicionado ainda era possível para ela sentir o incomodo provocado pelo aquecimento da pele, mas havia uma combustão interna também, mas essa não era atribuída ao clima ou ao sol e sim a alguém, Antony.
A garota folheia aos poucos as paginas antigas do pequeno caderno e relembra de fases de sua vida que preferia não lembrar e outras que faria de tudo para tê-las de volta. Se você nunca teve um diário jamais poderá experimentar a nostalgia que a garota provava daquelas velhas folhas derrotadas na sua batalha desde já fada ao fracasso.
“19 DE SETEMBRO DE 2009
Olá Will, já faz muito tempo que a gente não se vê. Hoje é meu aniversário caso você não se lembre. Sim, estou com 14 anos e estamos a seis anos mantendo uma amizade.
Peço desculpas por não ter escrito mais em você, mas é que ultimamente não tenho achado nada que possa compartilhar com você. Algo que realmente valha à pena.
Hoje as garotas da escola fizeram uma surpresa para mim. Foi incrível. Fomos ao shopping depois da aula e comemos alguma coisa.
Então a Mari e a Annie, lembra delas né? Bem elas sumiram, e quando voltaram estavam com um bolo barato de supermercado e algumas velas em cima da cobertura de chantilly. Foi constrangedor, mas a Lilian não parava de rir na minha frente da minha cara de espanto...”
Luna solta um riso abafado pela lembrança daquele dia, fora o ultimo ano das quatro juntas, pois no ano seguinte ela fora para a capital e esta lá até hoje.
Havia páginas com pequenas bolhas manchadas, lágrimas. Pobre Will suportou muitas coisas nesses anos, creio que se fosse um humano e tivesse que ouvir todo o discurso escrito em seu corpo procuraria alguma ponte. Era muita coisa para suportar.
Esse também é o problema de Luna, muita coisa para suportar. È como se ela fosse Atlas e tivesse que manter Urano e Gaia afastados de sua paixão destruidora. Céu e terra.
A última página lhe chamou a atenção, esta é um daqueles momentos em que ela preferia não lembrar.
Se você nunca experimentou escrever num diário, sugiro meu caro leitor que tente. Não precisa ser algo rotineiro em que coisas banais sejam depositadas em páginas, mas algo confidencial. Muitos acham que este é um objeto de uso feminino, mas eles cometem um grave engano, homens também escrevem diários, mas não o conhecem por esse nome, nem mesmo eu sei como é referido este instrumento na visão masculina.
Mas voltando a atenção a Luna e seu amigo Will. Esta página lembra a jovem menina o ultimo de seus relacionamentos, e de todos, o mais destruidor. Ainda recente em seu peito.
“22 de outubro de 2013
Oi Will.
Eu sei já tenho 18 anos, sou mulher, tenho minhas responsabilidades, mas você é o único que me sobrou para falar dele sem ser julgada.
Sim eu o amei e não vou negar, mas o sentimento não era mútuo. Prefiro não dizer seu nome e deixá-lo na curiosidade. É o melhor a fazer. A dor que sinto me impede de emitir qualquer lembrança sobre ele ou o brilho de seus olhos...”
Ela fecha os olhos e solta um suspiro lento e forte. Essa fase já passou. É engraçado que velhos hábitos nunca são deixados para trás, uma rápida olhada em sua gaveta e ela encontra a sua espada, ou melhor, a caneta simples com um enfeite de pena ao redor. A tinta já havia sido trocada diversas vezes durante os anos, mas o tubo permanecia o mesmo.
Uma nova batalha começou após meses de paz. Dessa vez o dançar da espada foi suave e calmo, uma escrita singela e alegre.
“31 de março de 2014
Olá Will.
Hoje não é meu aniversário, mas ganhei um presente. Antony falou comigo hoje.
Foi algo simples, mas o suficiente para me deixar alegre.
Desculpe a brevidade da minha escrita, mas não pensar direito. Quando estiver mais calma eu falo com você de novo.”
A sensação de dever cumprido passa pelo corpo esbelto da ruiva. O sorriso riscando de um rosa suave a pele clara. A capa é fechada com a maior cautela, a caneta é repousada no chão ao seu lado. O lençol branco da cama abriga o diário rosa envelhecido. O controle do ar e tomado pelas mãos brancas da garota e o vento artificial é cessado. O feixe da janela é aberto e o jardim no andar de baixo resplandece de cores, o sol brilha no seu ápice.
Encostada perto do portão esta a velha bicicleta.
Luna corre escada abaixo pegando um short no caminho e óculos de sol na mesa ao lado da porta.
Na rua com a bicicleta a garota ruiva pedala sem rumo ou destino, apenas saboreando o vento no rosto e o sol queimando a sua pele suave. O sorriso de orelha a orelha.
Naquele momento era só ela e seu intimo, ela e seus sentimentos, ela e a razão de seu sorriso. Ela e Antony. Mesmo que de modo subjetivo. O seu feliz para sempre esta começando.
A primeira volta de seu infinito.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

A janela do terceiro

    A chuva cai torrencialmente no outro lado da janela. As árvores se agitam com o vento que sopra, mas a ausência dela ainda não se compara com a tempestade que se derrama pelas ruas da cidade, levando as pessoas a se abrigarem em suas casas ou embaixo de seus guarda-chuvas, deixando os motoristas aflitos, as crianças decepcionadas por terem a brincadeira dada por encerrada. Mas, mesmo tudo isso, não se compara com o sofrimento e aflição que a ausência de seu sorriso me acomete.
A tempestade passa após alguns minutos. As crianças estampam o sorriso no rosto e voltam à brincadeira, o trânsito flui como o sangue nas veias, aliviando os empresários, engravatados em seus carros e os guardas-chuvas são fechados e, um sol tímido ameaça a sair por sobre a nuvens cinzentas, mas não consigo sentir essa alegria novamente.
Agora, sentado, olho pela janela do terceiro andar e relembro de todos os momentos em que passamos juntos neste pequeno apartamento que para nós era um palácio de alegrias e me deixo guiar por essas lembranças doces de primaveras passadas. Ah memórias...
Era 30 de julho de 2002. O povo invadiu as ruas, bares, lanchonetes. Todos partilham uma única alegria, Presidente Prudente estampa um único sorriso. Mais um troféu estava vindo para o país e que Cafu ergue altivamente em meio ao campo, deixando nos alemães um olhar de inveja ao ver a estatueta dourada em outras mãos ao invés da suas.
Gritos, abraços, beijos extravasam a tensão que apertava os corações a cada lance do jogo disputado. Mais uma rodada de cerveja, mais uma onda de risadas, mais uma comemoração com Luiz e Murilo, velhos amigos que estavam com os nós dos dedos brancos e olhos vidrados na tela da pequena televisão do bar do Calopa. 
E foi então que a vi. Aqueles olhos castanhos, dentes brancos e cabelos loiros que desciam até a nuca. 
- Oi – sua voz me tirou do pequeno voo que levantei,  aquela voz doce e suave – Jogo intenso não? Por um momento achei que  os branquelos levariam a melhor.
- Com certeza, foi um jogo tenso. – Ela disparou mais um de seus sorrisos e afastou um mecha que invadiu seus olhos. 
Retribui seu sorriso e continuo a comtemplar aquela linha branca perfeita, que pouco tempo depois foi a razão de meu rosto ilustrar o mesmo.
- Mariana – ela se apresentou me estendendo a mão. Apertei-a, mas meu instinto queria a aproximação de meu lábio no dela.
- Douglas – respondi.
Conversamos por muito tempo, sem se importar com a algazarra do lugar, Luiz e Murilo, sentados a duas mesas longe de nós, faziam comentários baixos e caiam na gargalhada logo após. Com certeza o assunto era o novo casal que se formava naquele instante.
Levei-a de volta a sua casa, dois quarteirões a frente e conversamos um pouco mais. Descobri que ela cursava o ultimo ano da faculdade, bem como eu. Sua casa era um pequeno sobrado com uma varanda na janela do centro, o que ela me diz ser o seu quarto. As paredes eram de um vermelho claro, um pequeno jardim ocupava uma parte do quintal.
Me despedi logo após ter pego o seu telefone. Virei-me, mas sabia que ela ainda estava parada me olhando. Ela andou até mim com passos vacilantes e tímidos e quando estava próxima de mim, lançou os braços em meu pescoço e me beijou. Lábios suaves e quentes...
Fecho os olhos, não quero reviver aquilo, a dor é grande demais. Balanço a cabeça e tiro os olhos da janela e vou para a sala.
Fotos, pinturas, objetos. Lembranças. Não consigo me livrar dessas coisas, há memórias que devem ser lembradas e há o rosto dela. Um rosto angelical , cuja beleza poderia se equiparar a de Afrodite.
A garrafa de vinho ainda está cheia, viro o liquido que desce pela garganta e sobe para a cabeça causando uma tontura momentaneamente. A garrafa está vazia quando a luz crepuscular invade a janela aberta. Os postes de luz emitem sua luz fraca que guia o caminho daqueles que vagueiam pela noite, nas ruas da cidade. 
A lua já começa a emitir seu brilho fraco. Cheia e próxima ao planeta que me levanto do sofá, com passos trôpegos e apresentando sinais de embriaguez. 
- É impossível ficar aqui parada e não observá-la não acha? -  Mariana perguntou a mim quando a questionei porque não estava do meu lado. Seu pijama delineava as linhas do seu corpo, deixando-a ainda mais sensual e ativando meu libido. 
- Está impossível ficar te observando.
Ela saiu da janela e caminhou até o sofá sentando em meu colo e interrompendo qualquer palavra que pudesse dizer, com seu beijo. Colei seu corpo no meu e deitei-a no pequeno sofá. O toque da seda gelou meu peito nu, mas não me importei. O dia era nosso, a lua primaveril não poderia tirá-lo de mim...
O som da buzina me traz de volta ao devaneio. Fecho a janela e me deito.
O álcool tira de mim a consciência em questão de minutos e logo me vejo numa estrada que preferia não estar de volta.
- “And I will love you baby, Always. And I’ll be there forever and a day, Always” – junto minha voz ao coral formado por Mariana e Jon Bom Jovi.
Ela se vira pra mim e disse, com o vento bagunçando a cabelheira loira dela:
- Eu vou te amar para sempre, Douglas. – E me beija.
Tudo aconteceu tão rápido, o carro aparece na contramão, Mariana desvia, perde o controle e o mundo gira três vezes. O mundo escurece.
Quando a luz toma vida novamente, estou num leito de hospital, uma enfermeira está em minha frente.
- Mariana... – disse com a voz rouca pela falta de uso. Ela balança a cabeça em sinal negativo e grito.
 O suor toma conta das minhas costas, procuro por um ar raro. O terror daquele dia me faz abandonar o apartamento. Pego as chaves na estante da sala, fecho a porta e desço as escadas com dificuldade.
Quando chego ao estacionamento, ligo o carro e parto sem rumo pelas ruas da cidade.
Já são uma hora da madrugada. Paro na primeira conveniência aberta que vejo e compro uma garrafa de vodka barata. Volto ao carro ligando o rádio que toca os riffs de alguma música do AC/DC que não consigo me lembrar qual é.
Continuo dirigindo e tomando a bebida quando a voz de Jon Bom Jovi começa a cantar
“This Romeo is bleeding. But you can’t see his blood. It’s nothing but some feelings. That this old dog kicked up...”
Tento desligar o som, mas a embriaguez tomou altas proporções que não tenho mais noção alguma onde fica o botão. Então começo a chorar. As lágrimas fluem por meus. Não consigo mais viver sem ela. Já se passou um mês e ainda a dor não amenizou nada.
A musica alcança o refrão. 
“And I will love you, baby. Always. And I’ll be there forever and a day, Always. And  I’ll be there till the stars don’t shine. Till the heavens burst and the words don’t rhyme. And I know when I die you’ll be on my mind. And I’ll love you. Always”
O velocímetro marca 80km/h, as lagrimas continuam a cair. A musica continua, agora com Mariana no coro. 
Acelero ainda mais, na fútil esperança de deixa-los para trás. A voz do astro some e permanece a voz doce e afinada de Mariana. Largo o volante e tampo meus ouvido, mas o volume é alto demais. O refrão retorna e vejo Mariana do meu lado agora. 
120km/h. As lágrimas aumentam embaçando minha visão. As mãos ainda tampam os ouvidos quando o farol de um outro carro aparece em meu campo de visão. Giro o volante, desvio do carro, mas bato na guia.
Uma, duas, três vezes o mundo gira ao meu redor, a música ainda está tocando, mas não a ouço mais. Mariana desapareceu, o mundo escurece aos pouco, a dor desaparece. A escuridão me abraça.