domingo, 16 de fevereiro de 2014

A janela do terceiro

    A chuva cai torrencialmente no outro lado da janela. As árvores se agitam com o vento que sopra, mas a ausência dela ainda não se compara com a tempestade que se derrama pelas ruas da cidade, levando as pessoas a se abrigarem em suas casas ou embaixo de seus guarda-chuvas, deixando os motoristas aflitos, as crianças decepcionadas por terem a brincadeira dada por encerrada. Mas, mesmo tudo isso, não se compara com o sofrimento e aflição que a ausência de seu sorriso me acomete.
A tempestade passa após alguns minutos. As crianças estampam o sorriso no rosto e voltam à brincadeira, o trânsito flui como o sangue nas veias, aliviando os empresários, engravatados em seus carros e os guardas-chuvas são fechados e, um sol tímido ameaça a sair por sobre a nuvens cinzentas, mas não consigo sentir essa alegria novamente.
Agora, sentado, olho pela janela do terceiro andar e relembro de todos os momentos em que passamos juntos neste pequeno apartamento que para nós era um palácio de alegrias e me deixo guiar por essas lembranças doces de primaveras passadas. Ah memórias...
Era 30 de julho de 2002. O povo invadiu as ruas, bares, lanchonetes. Todos partilham uma única alegria, Presidente Prudente estampa um único sorriso. Mais um troféu estava vindo para o país e que Cafu ergue altivamente em meio ao campo, deixando nos alemães um olhar de inveja ao ver a estatueta dourada em outras mãos ao invés da suas.
Gritos, abraços, beijos extravasam a tensão que apertava os corações a cada lance do jogo disputado. Mais uma rodada de cerveja, mais uma onda de risadas, mais uma comemoração com Luiz e Murilo, velhos amigos que estavam com os nós dos dedos brancos e olhos vidrados na tela da pequena televisão do bar do Calopa. 
E foi então que a vi. Aqueles olhos castanhos, dentes brancos e cabelos loiros que desciam até a nuca. 
- Oi – sua voz me tirou do pequeno voo que levantei,  aquela voz doce e suave – Jogo intenso não? Por um momento achei que  os branquelos levariam a melhor.
- Com certeza, foi um jogo tenso. – Ela disparou mais um de seus sorrisos e afastou um mecha que invadiu seus olhos. 
Retribui seu sorriso e continuo a comtemplar aquela linha branca perfeita, que pouco tempo depois foi a razão de meu rosto ilustrar o mesmo.
- Mariana – ela se apresentou me estendendo a mão. Apertei-a, mas meu instinto queria a aproximação de meu lábio no dela.
- Douglas – respondi.
Conversamos por muito tempo, sem se importar com a algazarra do lugar, Luiz e Murilo, sentados a duas mesas longe de nós, faziam comentários baixos e caiam na gargalhada logo após. Com certeza o assunto era o novo casal que se formava naquele instante.
Levei-a de volta a sua casa, dois quarteirões a frente e conversamos um pouco mais. Descobri que ela cursava o ultimo ano da faculdade, bem como eu. Sua casa era um pequeno sobrado com uma varanda na janela do centro, o que ela me diz ser o seu quarto. As paredes eram de um vermelho claro, um pequeno jardim ocupava uma parte do quintal.
Me despedi logo após ter pego o seu telefone. Virei-me, mas sabia que ela ainda estava parada me olhando. Ela andou até mim com passos vacilantes e tímidos e quando estava próxima de mim, lançou os braços em meu pescoço e me beijou. Lábios suaves e quentes...
Fecho os olhos, não quero reviver aquilo, a dor é grande demais. Balanço a cabeça e tiro os olhos da janela e vou para a sala.
Fotos, pinturas, objetos. Lembranças. Não consigo me livrar dessas coisas, há memórias que devem ser lembradas e há o rosto dela. Um rosto angelical , cuja beleza poderia se equiparar a de Afrodite.
A garrafa de vinho ainda está cheia, viro o liquido que desce pela garganta e sobe para a cabeça causando uma tontura momentaneamente. A garrafa está vazia quando a luz crepuscular invade a janela aberta. Os postes de luz emitem sua luz fraca que guia o caminho daqueles que vagueiam pela noite, nas ruas da cidade. 
A lua já começa a emitir seu brilho fraco. Cheia e próxima ao planeta que me levanto do sofá, com passos trôpegos e apresentando sinais de embriaguez. 
- É impossível ficar aqui parada e não observá-la não acha? -  Mariana perguntou a mim quando a questionei porque não estava do meu lado. Seu pijama delineava as linhas do seu corpo, deixando-a ainda mais sensual e ativando meu libido. 
- Está impossível ficar te observando.
Ela saiu da janela e caminhou até o sofá sentando em meu colo e interrompendo qualquer palavra que pudesse dizer, com seu beijo. Colei seu corpo no meu e deitei-a no pequeno sofá. O toque da seda gelou meu peito nu, mas não me importei. O dia era nosso, a lua primaveril não poderia tirá-lo de mim...
O som da buzina me traz de volta ao devaneio. Fecho a janela e me deito.
O álcool tira de mim a consciência em questão de minutos e logo me vejo numa estrada que preferia não estar de volta.
- “And I will love you baby, Always. And I’ll be there forever and a day, Always” – junto minha voz ao coral formado por Mariana e Jon Bom Jovi.
Ela se vira pra mim e disse, com o vento bagunçando a cabelheira loira dela:
- Eu vou te amar para sempre, Douglas. – E me beija.
Tudo aconteceu tão rápido, o carro aparece na contramão, Mariana desvia, perde o controle e o mundo gira três vezes. O mundo escurece.
Quando a luz toma vida novamente, estou num leito de hospital, uma enfermeira está em minha frente.
- Mariana... – disse com a voz rouca pela falta de uso. Ela balança a cabeça em sinal negativo e grito.
 O suor toma conta das minhas costas, procuro por um ar raro. O terror daquele dia me faz abandonar o apartamento. Pego as chaves na estante da sala, fecho a porta e desço as escadas com dificuldade.
Quando chego ao estacionamento, ligo o carro e parto sem rumo pelas ruas da cidade.
Já são uma hora da madrugada. Paro na primeira conveniência aberta que vejo e compro uma garrafa de vodka barata. Volto ao carro ligando o rádio que toca os riffs de alguma música do AC/DC que não consigo me lembrar qual é.
Continuo dirigindo e tomando a bebida quando a voz de Jon Bom Jovi começa a cantar
“This Romeo is bleeding. But you can’t see his blood. It’s nothing but some feelings. That this old dog kicked up...”
Tento desligar o som, mas a embriaguez tomou altas proporções que não tenho mais noção alguma onde fica o botão. Então começo a chorar. As lágrimas fluem por meus. Não consigo mais viver sem ela. Já se passou um mês e ainda a dor não amenizou nada.
A musica alcança o refrão. 
“And I will love you, baby. Always. And I’ll be there forever and a day, Always. And  I’ll be there till the stars don’t shine. Till the heavens burst and the words don’t rhyme. And I know when I die you’ll be on my mind. And I’ll love you. Always”
O velocímetro marca 80km/h, as lagrimas continuam a cair. A musica continua, agora com Mariana no coro. 
Acelero ainda mais, na fútil esperança de deixa-los para trás. A voz do astro some e permanece a voz doce e afinada de Mariana. Largo o volante e tampo meus ouvido, mas o volume é alto demais. O refrão retorna e vejo Mariana do meu lado agora. 
120km/h. As lágrimas aumentam embaçando minha visão. As mãos ainda tampam os ouvidos quando o farol de um outro carro aparece em meu campo de visão. Giro o volante, desvio do carro, mas bato na guia.
Uma, duas, três vezes o mundo gira ao meu redor, a música ainda está tocando, mas não a ouço mais. Mariana desapareceu, o mundo escurece aos pouco, a dor desaparece. A escuridão me abraça.