segunda-feira, 14 de abril de 2014

O diario

A garota repousa a cabeça contra o lado da cama e reflete sobre todo o seu dia, a mensagem recebida e o pedido informal e surpreendente do garoto que ela gosta. A cabeleira ruiva amortece o atrito da madeira envernizada com o crânio, seu sorriso inunda sua face de orelha a orelha, fazendo com que suas sardas se espalhem pela face como café derramado em uma toalha branca.
O diário a fita no criado mudo ao lado da cama, a capa rosa envelhecida e suja com os anos de uso, as paginas que sofreram vários abusos e violência, manchadas de café, engorduradas pelos salgadinhos, sujas pelo chocolate que se prende aos dedos, murchas pela água. Guerreiras natas, sobreviventes a onze anos de atrito com a ponta de uma caneta, que não tinha um ritmo certo.
Se você conseguisse folhear as páginas deste diário, veria que nada disso é fantasia do narrador para entretê-lo, e sim a pura realidade de uma batalha travada entre as paginas em branco e os sentimentos de uma garota adolescente.
Luna encara o velho amigo chamado Will, o traz para seu colo, prensando-o contra a sua coxa desnuda e o abdômen coberto por uma fina camiseta regata. Faz um calor do lado de fora daquela janela, mesmo com o ar condicionado ainda era possível para ela sentir o incomodo provocado pelo aquecimento da pele, mas havia uma combustão interna também, mas essa não era atribuída ao clima ou ao sol e sim a alguém, Antony.
A garota folheia aos poucos as paginas antigas do pequeno caderno e relembra de fases de sua vida que preferia não lembrar e outras que faria de tudo para tê-las de volta. Se você nunca teve um diário jamais poderá experimentar a nostalgia que a garota provava daquelas velhas folhas derrotadas na sua batalha desde já fada ao fracasso.
“19 DE SETEMBRO DE 2009
Olá Will, já faz muito tempo que a gente não se vê. Hoje é meu aniversário caso você não se lembre. Sim, estou com 14 anos e estamos a seis anos mantendo uma amizade.
Peço desculpas por não ter escrito mais em você, mas é que ultimamente não tenho achado nada que possa compartilhar com você. Algo que realmente valha à pena.
Hoje as garotas da escola fizeram uma surpresa para mim. Foi incrível. Fomos ao shopping depois da aula e comemos alguma coisa.
Então a Mari e a Annie, lembra delas né? Bem elas sumiram, e quando voltaram estavam com um bolo barato de supermercado e algumas velas em cima da cobertura de chantilly. Foi constrangedor, mas a Lilian não parava de rir na minha frente da minha cara de espanto...”
Luna solta um riso abafado pela lembrança daquele dia, fora o ultimo ano das quatro juntas, pois no ano seguinte ela fora para a capital e esta lá até hoje.
Havia páginas com pequenas bolhas manchadas, lágrimas. Pobre Will suportou muitas coisas nesses anos, creio que se fosse um humano e tivesse que ouvir todo o discurso escrito em seu corpo procuraria alguma ponte. Era muita coisa para suportar.
Esse também é o problema de Luna, muita coisa para suportar. È como se ela fosse Atlas e tivesse que manter Urano e Gaia afastados de sua paixão destruidora. Céu e terra.
A última página lhe chamou a atenção, esta é um daqueles momentos em que ela preferia não lembrar.
Se você nunca experimentou escrever num diário, sugiro meu caro leitor que tente. Não precisa ser algo rotineiro em que coisas banais sejam depositadas em páginas, mas algo confidencial. Muitos acham que este é um objeto de uso feminino, mas eles cometem um grave engano, homens também escrevem diários, mas não o conhecem por esse nome, nem mesmo eu sei como é referido este instrumento na visão masculina.
Mas voltando a atenção a Luna e seu amigo Will. Esta página lembra a jovem menina o ultimo de seus relacionamentos, e de todos, o mais destruidor. Ainda recente em seu peito.
“22 de outubro de 2013
Oi Will.
Eu sei já tenho 18 anos, sou mulher, tenho minhas responsabilidades, mas você é o único que me sobrou para falar dele sem ser julgada.
Sim eu o amei e não vou negar, mas o sentimento não era mútuo. Prefiro não dizer seu nome e deixá-lo na curiosidade. É o melhor a fazer. A dor que sinto me impede de emitir qualquer lembrança sobre ele ou o brilho de seus olhos...”
Ela fecha os olhos e solta um suspiro lento e forte. Essa fase já passou. É engraçado que velhos hábitos nunca são deixados para trás, uma rápida olhada em sua gaveta e ela encontra a sua espada, ou melhor, a caneta simples com um enfeite de pena ao redor. A tinta já havia sido trocada diversas vezes durante os anos, mas o tubo permanecia o mesmo.
Uma nova batalha começou após meses de paz. Dessa vez o dançar da espada foi suave e calmo, uma escrita singela e alegre.
“31 de março de 2014
Olá Will.
Hoje não é meu aniversário, mas ganhei um presente. Antony falou comigo hoje.
Foi algo simples, mas o suficiente para me deixar alegre.
Desculpe a brevidade da minha escrita, mas não pensar direito. Quando estiver mais calma eu falo com você de novo.”
A sensação de dever cumprido passa pelo corpo esbelto da ruiva. O sorriso riscando de um rosa suave a pele clara. A capa é fechada com a maior cautela, a caneta é repousada no chão ao seu lado. O lençol branco da cama abriga o diário rosa envelhecido. O controle do ar e tomado pelas mãos brancas da garota e o vento artificial é cessado. O feixe da janela é aberto e o jardim no andar de baixo resplandece de cores, o sol brilha no seu ápice.
Encostada perto do portão esta a velha bicicleta.
Luna corre escada abaixo pegando um short no caminho e óculos de sol na mesa ao lado da porta.
Na rua com a bicicleta a garota ruiva pedala sem rumo ou destino, apenas saboreando o vento no rosto e o sol queimando a sua pele suave. O sorriso de orelha a orelha.
Naquele momento era só ela e seu intimo, ela e seus sentimentos, ela e a razão de seu sorriso. Ela e Antony. Mesmo que de modo subjetivo. O seu feliz para sempre esta começando.
A primeira volta de seu infinito.